As Flores da Noite
Parte I
Nada há mais incômodo do que o silêncio da floresta. Era possível sentir como poucas vezes, a constância da minha respiração esbaforida, enquanto alargava o passo pela vereda estreita.
Os gravetos dos seculares pinheiros que ladeavam a trilha úmida crepitavam sob meus pés resolutos, enquanto o silêncio e a escuridão ao meu redor enervavam ainda mais minha alma inquieta. Com efeito, meu espírito tiritava tal qual a tênue luz da vela que eu carregava, fulgor bruxuleante ao sopro ameno da brisa de outono.
O velório da proprietária vizinha - a vetusta matriarca de família de fazendeiros da região - iria estender-se pela madrugada e, ciente de que cumpri minha obrigação moral com a breve visita ao guardamento, deixei a lúgubre capela da localidade já por volta das onze horas da noite. Apesar dos gentis protestos dos meus conhecidos, decidir por retornar a pé para casa, com a convicção de que os cerca de dois quilômetros seriam rapidamente vencidos. Eu estava acometido de uma verve reflexiva, possivelmente causada pelo triste episódio, pelo que decidi que seria sadia a breve caminhada noturna para espairecer.
A falecida contava até a data de sua morte noventa anos e, apesar da idade avançada, conservou certa jovialidade, sempre repetindo seus antiquíssimos ditos espirituosos e alegrando-se com a presença de algum interlocutor paciente em ouvir seus feitos, traquinagens de infância e estranhos causos, adotando postura deveras sombria ao recordar-se dessas misteriosas passagens dos tempos antigos.
Recordo como se fosse hoje a vez em que minha avó levou-me à antiquada fazenda em que a de cujus residia, para um daqueles costumeiros jantares que transcendiam a noite, oportunidade em que, após o banquete e uns goles de vinhos tinto, iniciou-se estranha conversa a respeito de causos de fantasmas e outras visagens, palavrório do qual participei apenas como atento ouvinte e, certamente - não tenho pudor de dizer - o mais impressionado.
Tanto que lembro-me, pois, de minha avó questionando a anciã acerca de uma lenda que há muito assombrava aqueles rincões. Adotando uma postura grave a baixando a voz - como que para não irritar os inefáveis espectros da noite - a vetusta senhora, cujos olhos cinzentos brilhavam tais quais vivas lamparinas que aclaravam as estantes da memória, iniciou sua preleção após breve pausa:
“Há muito tempo, quando eu ainda era apenas uma menina que brincava descalça pelos pastos floridos desta fazenda, ouvi, certa noite, o choro de minha mãe, que vinha desta mesma sala onde hoje estamos. Sob o umbral da porta notei, ao lusco-fusco, uma rosa vermelha que jazia sobre a alva toalha da mesa de carvalho. A flor, vistosa, desabrochara naqueles dias e dela emanava certa aura de frescor, que, não pude deixar de notar, contrastou com um sentimento que me acometeu: o broche havia sido arrancado de sua planta nativa, e em breve feneceria sob o mórbido encanto do tempo inexorável.
Apesar de minha puerícia e da pouca compreensão dos mistérios da existência, fui acometida de um sentimento melancólico, regado, talvez, pelo pranto de minha mãe. Eu sabia, também, o motivo da lamúria… meu irmão, o qual havia nascido anos antes de mim, havia falecido ainda bebê. Peste... tão comum por estes interiores.
O bebê jaz nesta fazenda, sob as terras ao norte, próximo aos limites da estrada – local onde, dizia minha mãe, as flores mortas reviviam como por mágica, sob a redoma feérica de pinheiros seculares. Ela também são suportou ficar longe do filho, mesmo ele morto, pelo que aquele local pareceu um descanso adequado… mas não posso deixar de pensar que ela acreditava que, assim como as flores, meu irmão também um dia ressuscitaria por obra de sortilégio piedoso dessas terras encantadas.
Por cima do diminuto túmulo, a progenitora, de coração entristecido logo após o funeral, plantou uma roseira, cujos acurados espinhos protegeriam meu irmão nas noites mais escuras… e cuja flor vermelha derramaria suas delicadas pétalas, lembrando os transeuntes que o amor é a única coisa que vale a pena, na vida, ou na morte.
Todos os anos, no aniversário de falecimento do infante, as flores das incontáveis roseiras que cresceram sobre o jazigo estranhamente desabrochavam na madrugada, criando quimérico espetáculo que, diziam os antigos, era obra do espírito da criança. Diziam, ainda, que mais de uma vez, viu-se um misterioso espectro caminhando entre o jardim que ficava à beira da estrada, nas proximidades do jazigo, e cujo choro atiçava os cavalos e afugentava os cães. Em tais noites sombrias, minha mãe, acometida de indizível ternura e saudade, tomava um lampião e ia até o roseiral, para, acredito, rezar sobre o jazigo. Ela sempre retornava com uma rosa entre as mãos feridas pelos espinhos…”
E eram esses os pensamentos que me acometiam naquela noite melancólica, quando fui desperto de minhas reminiscências pelo súbito piar de uma coruja-buraqueira, a qual quebrou o denso silêncio da floresta que circundava meu caminho. O fúnebre compromisso do qual eu tinha participado momentos antes e o despertar de minhas reminiscências – mormente a curiosa história que me impressionou anos atrás – compunham em mim um mal estar opressivo, uma incomum ansiedade, atiçada, ainda, pela atmosfera lúgubre da estrada vazia...
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