domingo, 29 de maio de 2022

 

As Flores da Noite 

 

Parte II


        Alcei a face para o galho de uma árvore que pendia sobre a vereda, onde descansava a ave que me assustou. O olhar atento do animal penetrou o meu, como que advertindo-me dos insondáveis mistérios que habitam aqueles bosques. “Talvez eu não seja a única entidade que te observa”: estranhamente, foi este o sombrio pensamento que entrecortou minha alma ao cruzar meu olhar com a imponente ave noturna.

        Após esse instante, nada mais ouvi, a não ser meus passos, cujo ritmo alargava-se pela senda rupestre.

        Dobrei uma curva da estrada em leve aclive, instante em que notei que a umidade da noite levantou uma alva bruma, translúcida mas fosforescente, emanando dela um tênue brilho, que não era explicado pelo luar, já que a lua estava ocultada por densas nuvens que enegreciam o céu. Lufadas da viração noturna faziam-se sentir na pele desnuda de meus braços. A atmosfera a meu redor mudou de forma que não posso explicar em palavras, como se eu estivesse no limiar entre dois mundos, duas realidades. A experiência daquela noite, até então, havia sido lúgubre e exaustiva, o que me transportou para um estado mental incomum de sensibilidade - mas o que senti ao mergulhar na neblina era algo distinto, como se estivesse passeando na angusta vereda do sonho.

        Alguns passos adiante, avistei o jardim que circundava parte da propriedade de minha vizinha falecida. A miríade de roseiras que guarneciam o antiquíssimo túmulo do irmão da senhora estavam lá e pareciam tremular como que acariciadas pelo vento. E, qual não foi minha surpresa quanto, ao me aproximar - a despeito do outono que se ia - notei os botões de flor desabrochados, compondo um tapete escarlate que se elevava na noite. Seus galhos espinhosos compunham um indistinto emaranhado de trevas, tateando a escuridão como garras que brotavam da terra. Os pinheiros que circundavam aquele solo misterioso elevavam-se como pilares de sombras, alteados por copas robustas que palpitavam, ressoando delas um tênue assobio.

        Espavorido com a singularidade daquela cenário opressivo, adiantei o passo para vencer a curva da estrada, encolhendo-me como que para não ser arrebatado pelo roseiral o qual parecia ter criado vida, compondo um gigantesco organismo monstruoso prestes a devorar os incautos que ousassem atravessar aquele caminho de ares hediondos, sobrenaturais.

        Prestes a vencer a sinuosidade, a poucos metros do mausoléu que erguia-se dentre o roseiral, estaquei. A aflição que me consumia transformou-se em pavor, sustando meus passos e enterrando meu grito. A visão que se desvelou a frente, confesso, abalou para sempre minha sanidade!

        Eis que dentre o rosal, contiguamente à cerca que separava o jardim da estrada, abriu-se o limiar de uma pequena trilha que - acredito - levava ao antiquíssimo jazigo. Ramos se fechavam, alteando a viela, dando-lhe aspecto de túnel. No interior daquela alameda, de costas para mim, contemplei duas entidades diáfanas levemente brilhantes, como que vestidas de branco, as quais se iam flutuando lado a lado em direção à tumba! Um dos espectros aparentava ser uma senhora de avançada idade alquebrada pelo tempo, cujos longos e alvos cabelos esvoaçavam ante ignota brisa. Agarrada em sua mão via-se uma pequena criatura, aparentando ser criança de tenra idade que levava consigo uma flor carmesim.

        As fantasmagorias, ao chegarem ao túmulo, elevaram-se em direção ao céu, ainda de mãos dadas, desaparecendo como tênues brumas, logo confundindo-se com os cirros que pairavam no horizonte noturnal.

        Ainda hoje não possuo qualquer explicação para os acontecimentos daquela noite singular. Se cresceu meu espanto diante dos mistérios deste mundo, em maior medida alentou-se minha fé no sobrenatural. Certo é que amiúde ouve-se histórias das visagens que assombram o roseiral da velha fazenda.


                                                                                              ***


As Flores da Noite

 

Parte I

 

        Nada há mais incômodo do que o silêncio da floresta. Era possível sentir como poucas vezes, a constância da minha respiração esbaforida, enquanto alargava o passo pela vereda estreita.

        Os gravetos dos seculares pinheiros que ladeavam a trilha úmida crepitavam sob meus pés resolutos, enquanto o silêncio e a escuridão ao meu redor enervavam ainda mais minha alma inquieta. Com efeito, meu espírito tiritava tal qual a tênue luz da vela que eu carregava, fulgor bruxuleante ao sopro ameno da brisa de outono.

        O velório da proprietária vizinha - a vetusta matriarca de família de fazendeiros da região - iria estender-se pela madrugada e, ciente de que cumpri minha obrigação moral com a breve visita ao guardamento, deixei a lúgubre capela da localidade já por volta das onze horas da noite. Apesar dos gentis protestos dos meus conhecidos, decidir por retornar a pé para casa, com a convicção de que os cerca de dois quilômetros seriam rapidamente vencidos. Eu estava acometido de uma verve reflexiva, possivelmente causada pelo triste episódio, pelo que decidi que seria sadia a breve caminhada noturna para espairecer.

        A falecida contava até a data de sua morte noventa anos e, apesar da idade avançada, conservou certa jovialidade, sempre repetindo seus antiquíssimos ditos espirituosos e alegrando-se com a presença de algum interlocutor paciente em ouvir seus feitos, traquinagens de infância e estranhos causos, adotando postura deveras sombria ao recordar-se dessas misteriosas passagens dos tempos antigos.

        Recordo como se fosse hoje a vez em que minha avó levou-me à antiquada fazenda em que a de cujus residia, para um daqueles costumeiros jantares que transcendiam a noite, oportunidade em que, após o banquete e uns goles de vinhos tinto, iniciou-se estranha conversa a respeito de causos de fantasmas e outras visagens, palavrório do qual participei apenas como atento ouvinte e, certamente - não tenho pudor de dizer - o mais impressionado.

        Tanto que lembro-me, pois, de minha avó questionando a anciã acerca de uma lenda que há muito assombrava aqueles rincões. Adotando uma postura grave a baixando a voz - como que para não irritar os inefáveis espectros da noite - a vetusta senhora, cujos olhos cinzentos brilhavam tais quais vivas lamparinas que aclaravam as estantes da memória, iniciou sua preleção após breve pausa:

        “Há muito tempo, quando eu ainda era apenas uma menina que brincava descalça pelos pastos floridos desta fazenda, ouvi, certa noite, o choro de minha mãe, que vinha desta mesma sala onde hoje estamos. Sob o umbral da porta notei, ao lusco-fusco, uma rosa vermelha que jazia sobre a alva toalha da mesa de carvalho. A flor, vistosa, desabrochara naqueles dias e dela emanava certa aura de frescor, que, não pude deixar de notar, contrastou com um sentimento que me acometeu: o broche havia sido arrancado de sua planta nativa, e em breve feneceria sob o mórbido encanto do tempo inexorável.

        Apesar de minha puerícia e da pouca compreensão dos mistérios da existência, fui acometida de um sentimento melancólico, regado, talvez, pelo pranto de minha mãe. Eu sabia, também, o motivo da lamúria… meu irmão, o qual havia nascido anos antes de mim, havia falecido ainda bebê. Peste... tão comum por estes interiores.

        O bebê jaz nesta fazenda, sob as terras ao norte, próximo aos limites da estrada – local onde, dizia minha mãe, as flores mortas reviviam como por mágica, sob a redoma feérica de pinheiros seculares. Ela também são suportou ficar longe do filho, mesmo ele morto, pelo que aquele local pareceu um descanso adequado… mas não posso deixar de pensar que ela acreditava que, assim como as flores, meu irmão também um dia ressuscitaria por obra de sortilégio piedoso dessas terras encantadas.

        Por cima do diminuto túmulo, a progenitora, de coração entristecido logo após o funeral, plantou uma roseira, cujos acurados espinhos protegeriam meu irmão nas noites mais escuras… e cuja flor vermelha derramaria suas delicadas pétalas, lembrando os transeuntes que o amor é a única coisa que vale a pena, na vida, ou na morte.

        Todos os anos, no aniversário de falecimento do infante, as flores das incontáveis roseiras que cresceram sobre o jazigo estranhamente desabrochavam na madrugada, criando quimérico espetáculo que, diziam os antigos, era obra do espírito da criança. Diziam, ainda, que mais de uma vez, viu-se um misterioso espectro caminhando entre o jardim que ficava à beira da estrada, nas proximidades do jazigo, e cujo choro atiçava os cavalos e afugentava os cães. Em tais noites sombrias, minha mãe, acometida de indizível ternura e saudade, tomava um lampião e ia até o roseiral, para, acredito, rezar sobre o jazigo. Ela sempre retornava com uma rosa entre as mãos feridas pelos espinhos…”

        E eram esses os pensamentos que me acometiam naquela noite melancólica, quando fui desperto de minhas reminiscências pelo súbito piar de uma coruja-buraqueira, a qual quebrou o denso silêncio da floresta que circundava meu caminho. O fúnebre compromisso do qual eu tinha participado momentos antes e o despertar de minhas reminiscências – mormente a curiosa história que me impressionou anos atrás – compunham em mim um mal estar opressivo, uma incomum ansiedade, atiçada, ainda, pela atmosfera lúgubre da estrada vazia...


sábado, 28 de maio de 2022

 

Um sonho


Certa noite, dentre as mais escuras
Eu passeava pelas trevas, pelas ruas
Qual não foi meu espanto, aquelas alturas
Dentre as sombras pairavam estranhas figuras...

Naquelas melancólicas e avançadas horas
Iam as silhuetas, soturnas, silenciosas
E que terror me causavam sua vil aparência!
Mas pareciam negligenciar a minha presença

Minha curiosidade suplantou o medo
E resolvi seguir a horda, em segredo
O murmúrio de uma prece o vento soprava
Enquanto na escuridão, eu espreitava

Dentre as veredas da antiga cidade
Cada passo aguçava  minha curiosidade
Haverá ainda mistérios na enfadonha existência?
Serão as entidades ecos da minha consciência?

Guiaram-me os soturnos vultos,
Para a beira de um abismo escuro...
Que haverá nestes rincões vazios?
Horda de anjos, poetas esquecidos?

Eis que, como por toque de estranho encanto
Vi-me sozinho, no limiar do abismo - o contemplando
O negror da noite adentrou minha alma
Nada havia ali, musicas, rostos, sequer uma fala...

Prostrei-me ante a melancolia desta vil existência
Será este abismo um portal para a demência..?
Meus sonhos arcanos não guardam mais qualquer sanidade
Como um estranho, porém, oculto-me da realidade...

Quando olhei para o abismo, contemplei a verdade, enfim
Eis que suas trevas eram um espelho, que refletiam a mim
E soube - meus sonhos recônditos de poeta das noites,
Eram como a brisa que acalentava as almas das flores...

Daquela profundeza de mistérios,
Passaram a bailar luzes, brilhos etéreos!
Que ascenderam como fagulhas de chamas - seres alados
Incandescentes fantasmas, que me guiaram àquela beirado

E assim sussurrou-me uma daquelas inefáveis entidades:
"És o poeta da lua, navegas na falua das madrugadas silenciosas...  o conhecemos!
Este abismo, aos teus pés, é o mar de sua esperança - onde nos escondemos
Bardo do horizonte, a prece de teus versos foi ouvida
O mundo real será um devaneio e toda a dor será esquecida
Se em prantos concebestes tantas poesias
No silêncio dos espaços encontrarás a calmaria
Levante-se, alma inquieta
Mistérios o aguardam, nobre poeta!"

Um sonho! Um sonho! Já não sei mais discernir!
Mas o que será realidade no beiral do desconhecido?

 

***