As Flores da Noite
Parte II
Alcei a face para o galho de uma árvore que pendia sobre a vereda, onde descansava a ave que me assustou. O olhar atento do animal penetrou o meu, como que advertindo-me dos insondáveis mistérios que habitam aqueles bosques. “Talvez eu não seja a única entidade que te observa”: estranhamente, foi este o sombrio pensamento que entrecortou minha alma ao cruzar meu olhar com a imponente ave noturna.
Após esse instante, nada mais ouvi, a não ser meus passos, cujo ritmo alargava-se pela senda rupestre.
Dobrei uma curva da estrada em leve aclive, instante em que notei que a umidade da noite levantou uma alva bruma, translúcida mas fosforescente, emanando dela um tênue brilho, que não era explicado pelo luar, já que a lua estava ocultada por densas nuvens que enegreciam o céu. Lufadas da viração noturna faziam-se sentir na pele desnuda de meus braços. A atmosfera a meu redor mudou de forma que não posso explicar em palavras, como se eu estivesse no limiar entre dois mundos, duas realidades. A experiência daquela noite, até então, havia sido lúgubre e exaustiva, o que me transportou para um estado mental incomum de sensibilidade - mas o que senti ao mergulhar na neblina era algo distinto, como se estivesse passeando na angusta vereda do sonho.
Alguns passos adiante, avistei o jardim que circundava parte da propriedade de minha vizinha falecida. A miríade de roseiras que guarneciam o antiquíssimo túmulo do irmão da senhora estavam lá e pareciam tremular como que acariciadas pelo vento. E, qual não foi minha surpresa quanto, ao me aproximar - a despeito do outono que se ia - notei os botões de flor desabrochados, compondo um tapete escarlate que se elevava na noite. Seus galhos espinhosos compunham um indistinto emaranhado de trevas, tateando a escuridão como garras que brotavam da terra. Os pinheiros que circundavam aquele solo misterioso elevavam-se como pilares de sombras, alteados por copas robustas que palpitavam, ressoando delas um tênue assobio.
Espavorido com a singularidade daquela cenário opressivo, adiantei o passo para vencer a curva da estrada, encolhendo-me como que para não ser arrebatado pelo roseiral o qual parecia ter criado vida, compondo um gigantesco organismo monstruoso prestes a devorar os incautos que ousassem atravessar aquele caminho de ares hediondos, sobrenaturais.
Prestes a vencer a sinuosidade, a poucos metros do mausoléu que erguia-se dentre o roseiral, estaquei. A aflição que me consumia transformou-se em pavor, sustando meus passos e enterrando meu grito. A visão que se desvelou a frente, confesso, abalou para sempre minha sanidade!
Eis que dentre o rosal, contiguamente à cerca que separava o jardim da estrada, abriu-se o limiar de uma pequena trilha que - acredito - levava ao antiquíssimo jazigo. Ramos se fechavam, alteando a viela, dando-lhe aspecto de túnel. No interior daquela alameda, de costas para mim, contemplei duas entidades diáfanas levemente brilhantes, como que vestidas de branco, as quais se iam flutuando lado a lado em direção à tumba! Um dos espectros aparentava ser uma senhora de avançada idade alquebrada pelo tempo, cujos longos e alvos cabelos esvoaçavam ante ignota brisa. Agarrada em sua mão via-se uma pequena criatura, aparentando ser criança de tenra idade que levava consigo uma flor carmesim.
As fantasmagorias, ao chegarem ao túmulo, elevaram-se em direção ao céu, ainda de mãos dadas, desaparecendo como tênues brumas, logo confundindo-se com os cirros que pairavam no horizonte noturnal.
Ainda hoje não possuo qualquer explicação para os acontecimentos daquela noite singular. Se cresceu meu espanto diante dos mistérios deste mundo, em maior medida alentou-se minha fé no sobrenatural. Certo é que amiúde ouve-se histórias das visagens que assombram o roseiral da velha fazenda.
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