sexta-feira, 3 de janeiro de 2020


 Crônicas da Casa Vazia


O abismo do tempo

(Parte 1)

Como devoto da música dos ventos das derradeiras tardes de inverno, o velho capataz contemplava, no limiar do bosque, o ulular inconstante decorrente da pertinaz avença entre a viração e as folhas das árvores altivas. Dentre o lusco-fusco daquele final de tarde, não distinguiam-se  as longas barbas daquele vetusto trabalhador campesino com os densos liquens que encobriam a relva. Os torpes raios de sol bruxuleavam languidamente, ensaiando um adeus e convidando a escuridão que se aproximava. Podia imaginar, o campesino, que o badalar do sino do campanário da antiga igreja do longínquo vilarejo marcavam a hora do Angelus, mas as horas já não importavam naqueles rincões.
           Um suspiro e um passar de olhos a volta selaram o instante de meditação: ainda havia trabalho a fazer. Em um ímpeto o trabalhador recolheu restos de madeiras secas que o circundava, ajeitando-as em seu saco de sarapilheira, não antes sem notar o curioso aspecto das densas e obscuras nuvens que se aproximavam no, até então, plácido horizonte. Se a experiência já o alijou de todos os medos, também o ensinou a respeitar um sinal da natureza - esta, capaz das maiores sutilezas e canduras,  mas também das mais titânicas assombrações...


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