Certa noite de verão, recordo-me bem, a janela de meu quarto permanecia aberta, transportando para o interior escuro uma tênue claridade azulada – mistura do orvalho da noite com um brilho fantasmagórico das profundezas do céu infinito. Diante da insônia que insistia em aclarar meus pensamentos singulares, pus qualquer coisa tocar no antigo aparelho de rádio empoeirado que ficava sobre o escrivaninha e voltei a deitar.
O restante da casa estava silencioso, pelo que meu aposento parecia o último oásis de algum tipo de vida no universo: tudo o mais era trevas e silêncio perene. Quem diria, se aquele fosse o último dia da terra, as ondas de rádio tocariam algo do The Who pela eternidade e apenas eu saberia disso. A atmosfera da madrugada exalava melancolia como uma garrafa de vinho aberta. Eu estava ali, com as minhas dúvidas e apenas com elas… todo e qualquer lampejo de resposta era mais fugidio que o iluminar efêmero dos pirilampos que vez ou outra atravessavam a escuridão, como anjos perdidos e desorientados.
Percebi, em um instante, que a janela aberta desvelava um portal para recônditos caminhos ladeados de estrelas, aquilo que os velhos poetas denominam firmamento. Não toca música lá, ouvi dizer certa vez, não há massa de oxigênio ou qualquer outro substrato por onde as ondas sonoras possam se propagar. Talvez haja absolutamente nada ou uma infinitude de universos. Ambas as perspectivas assustavam-me com igual intensidade, mas eu sempre pensava nisso. O mundo estava algo chato, as últimas fronteiras do conhecimento debruçavam-se em objetos muito pequenos ou muitos grandes e os problemas cotidianos eram um mar de lama de enfado e absoluta corrupção de tudo o que o homem chamou de virtude.
Restava-me uma passagem aberta e acreditava que nada mais seria capaz de me causar espanto. Meus olhos semicerrados miravam a abertura escancarada: meu espírito arredio encarava, enervado, uma infinitude de questões. Senti o veneno do sono tomar meu corpo exaurido e lentamente adormeci, enquanto a lua – crescente ou minguante, nunca sei – alcançava o paroxismo no horizonte argênteo. Como um prisma, a janela dos sonhos estava entre minha alma e a entidade celeste que se elevava.
De inopino, acordei sentindo algo estranho. Meu rosto frio tocava uma rocha gélida enquanto meu corpo era pressionado por uma brisa fremente que não parecia qualquer viração que já sentira. Abri meus olhos pesados e notei que estava deitado de bruços em gigantesca lage, sombreada por outras gigantescas pedras semelhantes a obeliscos egípcios, negros e cinzentos, que se alteavam como edifícios. No céu, estrelas davam uma sensação de estranha familiaridade, mas eu não sabia aonde estava e como fui parar ali. Não parecia qualquer lugar construído pelas intempéries milenares que erigiram os contornos da terra.
Caminhei por angustas veredas, aterrorizado pela perspectiva que vislumbrava: eu estava sozinho, sem qualquer mantimento, em local desconhecido e que não se parecia com qualquer ambiente que já estive antes. Escrutinei os arredores e constatei somente a curiosa floresta de titânicos obeliscos plúmbeos que se assemelhavam a espinhos projetados do chão. A estranha brisa que eu senti ao acordar continuava, criando uma sinfonia de aterradores silvos graves que passeavam por entre as cavernas e reentrâncias, harmonizando-se em uma espécie de música ritualística de eras desconhecidas.
Após
angustiante e exaustiva
caminhada
– não seu
dizer se horas ou minutos – cheguei a uma espécie de vale onde,
no centro, dentre duas montanhas formadas de obeliscos, desenhava-se
uma espécie de estrada ladeada de pequenas chamas azuis que
culminavam em um portal colossal, de forma retangular que parecia
elevar-se no céu limpo. Oculto pelas sombras, cheguei mais perto
para observar a estranha passagem, pelo que notei que parecia uma
espécie de entrada artificial para um salão comprido que acabava
por perder-se nas profundezas de alguma caverna interior. Tenho
calafrios até hoje só de imaginar a envergadura das criaturas
capazes de transitarem por ali…
Qual não foi meu espanto quanto notei sair da passagem seis homens… ou criaturas… muito altas, vestidas com hábitos pretos - semelhantes aos usados por frades – e cujos rostos estavam cobertos pela escuridão. Caminhavam três de cada lado, e todos carregavam uma espécie de cetro iluminado na ponta pela mesma luz azulada que iluminava o caminho. Da distância em que eu me ocultava, pude vê-los dirigirem-se a uma espécie de globo metálico situado no final do vale, do lado oposto da gigantesca passagem.
A cápsula, sem qualquer ruído, elevou-se até sumir no horizonte entrecortado pelas rochas. Foi então que vislumbrei, ao apurar os olhos em direção ao céu, um astro azul ao longe.
Despertei sobressaltado! O vento atiçava as cortinas do meu quarto e nuvens ligeiras iluminadas pelo luar bailavam no céu. Não sei se tudo foi sonho ou se aquela experiência ocorreu, mas naquela noite cerrei a janela e não mais a abro nas noites de vigília: há certas portais para o desconhecido que não devem ser abertos.
